Curuçá: grave este nome. Será repetido reiteradas vezes. É neste pequeno município do litoral paraense, a 130 km de Belém, que estão planejadas duas grandes obras da Amazônia, dois mega-portos: o Terminal Off-Shore do Espadarte e a Estação Flutuante de Transbordo da Anglo American.
Guarde também este tema: 2ª Esquadra da Marinha, a base está em definição, não se sabe se São Luís, Belém, Chaves no Marajó ou mesmo Curuçá. Além de decorar o nome dos peixes que adornam os poços de petróleo do Sudeste Atlântico do Brasil, prepare-se para fisgar mais alguns que produzirão gás natural e petróleo nas águas já salgadas da Amazônia Atlântica. É que, com o estudo de impacto ambiental aprovado, consultas públicas feitas, os consórcios liderados por empresas como Petrobras (Costa do Amapá) e OGX (Bacia Pará-Maranhão), prometem resultados a curto prazo.
Mas nem tudo é calmaria. O Brasil sonha com batalhas navais, para a qual investe mais de R$ 25 bilhões em submarinos, corvetas e sistemas de vigilância. Ao mesmo tempo, este mesmo país-Brasil não consegue organizar a navegação no interior da Amazônia, onde há mais de 100 mil barcos irregulares, e sequer se preocupa com o transporte escolar de centenas de milhares de ribeirinhos. Talvez alguns destes ribeirinhos venham a manejar estes potentes e milionários equipamentos que o país quer lançar ao mar.
As fragilidades de infraestrutura portuária que estrangulam o modelo exportador brasileiro não são de hoje. É fácil concluir que o Brasil não possui uma política de portos condizente com suas necessidades, especialmente nesta porção norte, na Amazônia Atlântica. Até o momento, a questão é tratada apenas nos corredores de gabinetes especialistas ou militares, nunca debatida abertamente com a sociedade. Afora as confederações empresariais, não há uma única organização da sociedade civil que acompanhe a questão de portos na região!
Os portos da Amazônia brasileira
Na Amazônia Atlântica há três portos principais: São Luís, com terminais públicos e privados, como o da Vale, que exporta o ferro paraense de Carajás; Belém, público, e que é o mesmo porto capenga, projetado pelos ingleses em 1900, para atender às embarcações a vapor e vela do período da borracha; Vila do Conde (Barcarena), público e privado, próximo a Belém, com calado insuficiente para as necessidades paraenses (entre 11m e 14m); e Santana, no Amapá, público e privado, igualmente, de baixo calado.
Os últimos licenciamentos portuários, como o terminal da Cargill em Santarém ou o novo porto de Manaus, mostraram-se mais como comédias trágico-burlescas que como resultado de estudos bem elaborados, seguidos, naturalmente de diálogo com a sociedade. Este não é, como vimos recentemente, um privilégio da Amazônia. O licenciamento dos portos propostos pelo grupo do empresário brasileiro Eike Batista só avançou mesmo no PortoX, em Itaguaí, no Rio de Janeiro, depois de desembarques frustrados em Santa Catarina e São Paulo (Peruíbe). Em outras regiões do Brasil, como em Ilhéus, Bahia, portos são também palco de fortes emoções. Enfim, um novo porto é assunto explosivo, sujeito a maremotos.
Por que Curuçá?
Curuçá é o derradeiro ponto geográfico da margem direita do maior estuário do mundo, por onde passa ¼ das águas de todos os rios do planeta, o Estuário Tocantins/Amazonas, cujas águas fluviais afogam-se no oceano. É na Ponta da Tijoca [1], na Ilha dos Guarás, referida desde o século XVII nas cartas de navegação, que se projeta, desde a década de 1980, o Super Porto do Espadarte [2], ou Terminal Off-Shore do Espadarte, como alguns propõem. Off-shore por estar fora da costa.
O Espadarte deveria escoar o minério de ferro de Carajás, mantendo os dividendos deste serviço de amarração e desatracagem em solo paraense. Resulta que no planejamento da obra os militares e engenheiros optaram pela Ponta da Madeira, em São Luis, a 892 km de Carajás. A justificativa seria para evitar a custosa travessia de pelo menos 10 km de ferrovias sobre os manguezais de Curuçá. Tem gente que diz que foi uma vitória dos políticos de plantão no Maranhão em detrimento do Pará…
Sucede que, 30 anos depois, a Companhia Docas do Pará – CDP, uma empresa federal, não esqueceu o assunto e, mesmo que a conta gotas, realizou ou incentivou estudos por organizações privadas para viabilizar o Espadarte. Foi assim que surgiram o grupo holandês RDP, e a própria Anglo American. A empresa RDP afirma que adquiriu o direito de posse da viúva de um posseiro de algumas áreas da União (ilhas, praias, mangues, campos apicum etc.) e, a partir daí, construiu as estacas de seu projeto, ignorando inclusive a existência de uma unidade de conservação de uso sustentável (Reserva Extrativista Mãe Grande de Curuçá, como veremos adiante).
A sul-africana Anglo American, 4º maior produtor mundial de minério de ferro, foi ainda mais criativa que seus pares brasileiros. A gigante mundial, que comprou da MMX (Eike Batista) a mina de ferro da Serra do Navio (AP) propõe trazer o minério do porto de Santana (AP), a mais de 600 km via fluvial, em imensos comboios de barcaças, para ser recondicionado em grandes navios, em pleno oceano, onde? Na frente da Ponta da Tijoca!
Em ambos os casos, o que atrai é a capacidade do Canal do Espadarte, com mais de 5 km de extensão, fundo estável de areia, que permitiria receber embarcações com calado superior a 25 metros. Este canal estaria distante cerca de 5 km da Ponta da Tijoca.
Comparativamente, os outros portos amazônicos, como São Luís, Belém, Barcarena etc., dependem de dragagem, além de se sujeitarem ao galeio das marés, mudanças constantes de canais, estações secas etc. Se a Ponta da Madeira, em São Luís, é capaz de atender navios de 350 mil ton [3], Tijoca receberia navios que ainda nem saíram do papel, de 450 mil a 500 mil ton.
E por que a Tijoca? Porque manteria a competitividade brasileira de minérios como o ferro, e abriria possibilidade para outros produtos que estão planejados para o Pará – outros minérios e minero-metalúrgicos: Vale (ALPA (aço), Onça Puma (níquel) , Sossego (cobre)), Norsk Hydro (ALBRAS e ALUNORTE), Alcoa (Juruti e outros) e possivelmente outros players do mesmo tamanho, como a Rio Tinto); biocombustíveis (Vale, Petrobras Biocombustivel), madeira e celulose (Suzano Papel e Celulose, Vale Florestar etc.) e outros produtos que agradecem transporte em grande escala e a baixo custo (grãos, por exemplo). Se Carajás, na década de 1980, fora projetado para exportar volumes inferiores a 100 milhões de ton./ano de minério de ferro, hoje se fala, com a Serra Sul, e a duplicação atual da ferrovia, em volumes que poderão ultrapassar as 300 milhões ton./ano.
Enquanto se consideram apenas os aspectos físicos, Curuçá realmente aparenta ser um lugar único, especial. No entanto, há características bióticas únicas, além das questões sociais. Por exemplo: o governo federal, atendendo as demandas de milhares de famílias de pescadores, marisqueiras e outras comunidades tradicionais, criou, por decreto presidencial, a partir do ano 2000, oito unidades de conservação de uso sustentável na região – as Reservas Extrativistas Marinhas. Em Curuçá, em 2002, foi a Reserva Extrativista Marinha Mãe Grande [4] de Curuçá. No total, estamos falando de mais de 100 mil famílias de moradores do litoral da Mesorregião do Nordeste Paraense, que têm nos manguezais fonte fundamental de alimentação e renda.
Alta Biodiversidade em Curuçá
Para as organizações científicas e ambientalistas, os manguezais do Pará e Amapá estão entre os mais bem preservados do planeta. Estariam, também, entre os mais biodiversos em termos da vida marinha, abrigando grande diversidade de moluscos, peixes, camarões, caranguejos, além de avifauna e mamíferos marinhos. Há cinco anos, o Instituto Peabiru e parceiros estudam e trabalham em Curuçá, resultando no projeto Casa da Virada, vencedor de Edital Público Petrobras Ambiental [5]. A este seguiu-se o Criança Esperança (da UNESCO e Rede Globo) para a continuidade da atividade de educação ambiental; e o projeto de ecoturismo de base comunitária, apoiado pelo Ministério do Turismo, desenvolvido pelo o Instituto Tapiaim, iniciativa de bravos jovens locais na estruturação de organização para a educação ambiental e a geração de renda a partir da biosociodiversidade.
Este trabalho da Casa da Virada envolveu mais de 54 técnicos e pesquisadores, tanto do Museu Paraense Emílio Goeldi – MPEG, como da Universidade Federal do Pará – UFPA (campus Bragança) e do Instituto Evandro Chagas, além da participação de centenas de representantes de 35 comunidades e de organizações da sociedade civil de Curuçá, e de órgãos públicos por meio da construção da Agenda 21 Local. Entre as conclusões do Instituto Peabiru e parceiros, e que precisam ser amplamente debatidas [6], destacam-se:
* Criação do Corredor Ecológico da Zona Costeira do Pará – é urgente tratar a região como um conjunto, afinal há 8 (oito) reservas extrativistas federais marinhas, e 2 (duas) Áreas de Proteção Ambiental (APA) estaduais de Algodoal (Marapanim) e Urumajó (Augusto Corrêa);
* Demarcação e planos de manejo das unidades de conservação – a maior parte das unidades não possui planos de manejo e não há sinalização e demarcação;
* Proteção urgente para a Mata Amazônica Atlântica – pesquisadores do Museu Goeldi identificaram a necessidade de urgente proteção para o que seria uma nova classificação de fitopaisagem. Este ambiente, único e altamente vulnerável, encontra-se seus principais remanescentes justamente nas ilhas flúvio-marinhas (Ipomonga e outras) onde se projeta o acesso e o retroporto do Porto do Espadarte. Em verdade, o que precisa ser priorizando é: a) Delimitação da área de ocorrência da Mata Amazônica Atlântica; b) Criação de unidade de conservação de proteção integral para proteger seus remanescentes; e c) A criação de uma Estação de Pesquisas, como centro de referência sobre a Mata Amazônica Atlântica, e que proporcione base de apoio física às pesquisas científicas;
* Efetiva Conservação da biodiversidade – Garantir proteção adequada às espécies de flora e fauna vulneráveis e ameaçadas. Entre as quais há espécies de quelônios marinhos e dulcícolas, aves marinhas e costeiras. A região é ponto importante de apoio para aves migratórias que vem do Hemisfério Norte;
* Monitoramento de espécies exóticas – especialmente o camarão Gigante-da-Malásia, que escapou do cativeiro. É importante lembrar que portos representam ameaças de organismos trazidos de outras regiões (as águas de lastro e espécies encontradas em cascos de embarcações – algas, fungos, mariscos etc.);
* Incremento na fiscalização ambiental – é insuficiente a atenção à exploração do caranguejo e a ação predatória de barcos pesqueiros industriais mais afora dos estuários;
* Aprofundamento das pesquisas de arqueologia – a identificação de materiais arqueológico e indícios relevantes apontam o potencial arqueológico da área, especialmente em zonas associadas à Mata Amazônica Atlântica (especialmente na ilha de Ipomonga);
* Garantir o fortalecimento do tecido social – a partir das organizações de base comunitária, para que estas sejam capazes de representar os anseios das diferentes comunidades. Respeitar e implementar as propostas da Agenda 21 local é um grande avanço.
Naturalmente, essas recomendações não esgotam as demandas locais, reprimidas por décadas.
O que a legislação fala sobre portos em unidades de conservação
O Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC é claro: para se alterar os limites de uma unidade de conservação federal é preciso de uma lei federal, ou seja, depende do Congresso Nacional. Assim, para se alterar os limites da Resex Mãe Grande de Curuçá e para se alterar a supressão de grandes quantidades de manguezais há diversos requisitos a cumprir, a começar pela vontade das milhares de famílias que vivem dos manguezais e seu entorno, não apenas de Curuçá, mas dos municípios vizinhos.
Em 2010 a Anglo American apresentou o EIA-RIMA de sua estação de transbordo flutuante. Só que se esqueceu de pedir licença ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBIO) – o órgão federal responsável pela gestão da Resex Mãe Grande de Curuçá. Também se esqueceu de considerar o impacto nos 600 km que seu comboio de barcaças percorreria. Bom, a lista de esquecimento é grande. O fato é que o Ministério Público Federal questionou na justiça tal EIA-RIMA e este se encontra embargado. A Anglo American nem poderia ter preparado um EIA-RIMA, o fez à revelia das autoridades.
Os rumores de que agora o Espadarte sai são crescentes. O Espadarte está em diversos discursos e documentos, tanto do poder público como da iniciativa privada. E se a 2ª Esquadra também se interessar por instalar suas bases nos manguezais do Pará? E se o petróleo e gás natural se confirmarem e dependerem de bases de apoio em portos de grande porte? Qual o futuro da Amazônia Atlântica? O que queremos, a Amazônia Atlântica ou a Amazônia Atlântida? O debate é urgente.
[1] Tijoca significa, em Tupi, barro, aqui, seria para designar o fim das águas barrentas do estuário dos rios Tocantins & Amazonas.
[2] O Espadarte é um dos peixes mais ameaçados da ictiofauna marinha amazônica.
[3] Hoje os navios que fazem a rota São Luis – Roterdã (Holanda), ou da Baía de São Marcos para a China teriam cerca de 350 mil ton.
[4] Mãe Grande porque o mangue é uma mãe e fornece fartura de alimentos.
[5] A Casa da Virada foi escolhida com outra trintena de projetos pelo Edital Petrobras 2007, concorrendo com mais de 900 projetos.
[6] Há recomendações de âmbito regional (para o Salgado e Zona Bragantina), para o município de Curuçá ou para determinadas ilhas ou comunidades.
Por João Meirelles Filho, do Instituto Peabiru
João Meirelles Filho mora a 800 metros do Porto de Belém é autor do Livro de Ouro da Amazônia (Ediouro) e de Grandes Expedições à Amazônia Brasileira (Metalivros). É Diretor Geral do Instituto Peabiru, ponto focal da Rede Brasileira de Gerenciamento Costeiro no Pará.