À primeira vista, o Brasil tem muitas semelhanças com a Rússia: ambos estão entre os países mais populosos do mundo, possuem um extenso território, uma estrutura política federada, multipartidarismo e instituições eleitas, uma população multiétnica, um desenvolvimento econômico significativo nos últimos anos, uma classe média emergente, grande riqueza de recursos naturais, entre eles o petróleo.
Têm ainda outra característica em comum que pode aparentemente levar os dois países a grandes protestos sociais: o desenvolvimento econômico e, especialmente as receitas do petróleo, não têm beneficiado da mesma forma toda a população mas apenas uma faixa limitada, que enriquece a olhos nus. Na Rússia, o número de multimilionários vem subindo desde os anos 1990, os programas sociais e o sistema de educação não são suficientes para fazer ascender a população mais carenciada na “escada social”.
Digamos que um dos problemas mais graves com o qual as autoridades se debatem é também comum à Rússia e ao Brasil: o alto nível de corrupção. A educação e a saúde reúnem críticas dos dois lados do Atlântico, quer pela sua qualidade, quer pela facilidade de acesso. Os outros serviços públicos, embora a Rússia tenha feito um esforço significativo de modernização, continuam a deixar os cidadãos insatisfeitos, quer russos, quer brasileiros.
Há mais um aspecto em comum: os dois países estão se preparando para serem anfitriões dos Jogos Olímpicos e de outras competições desportivas internacionais, cujo financiamento tem suscitado dúvidas quanto à transparência da sua aplicação.
Aquilo que o povo brasileiro exige nas ruas eu diria que pode perfeitamente com toda a razão e da mesma forma ser exigido pelo povo russo: fim da corrupção, melhores serviços públicos na educação e saúde, melhores estradas e transportes públicos.
Posto isto, considero que as semelhanças terminam aqui.
Moscou já viveu no ano passado uma situação social semelhante à que o Brasil está vivendo. Só que o governo russo reagiu de maneira bastante diferente da posição adotada por Dilma Rousseff.
Em Moscou, após as últimas eleições legislativas em dezembro de 2011 e últimas presidenciais, em março de 2012, nas quais Vladimir Putin foi reeleito, a agitação social dominou a capital russa. Milhares de pessoas saíram à rua, muitas foram detidas, a oposição inorgânica tentou fazer ouvir a sua voz. Os primeiros meses de 2012 foram de confrontação e havia quem falasse abertamente de uma nova “revolução” na Rússia. Mas isso não chegou a acontecer. O poder reagiu, adotou todo um sistema de “contenção da agitação” que passou, nomeadamente, pela aprovação de novas leis que dificultam a atividade das organizações não-governamentais, agravam a responsabilidade por infrações da parte dos manifestantes e introduzem a responsabilidade criminal por atos de calúnia.
As autoridades efetuaram buscas em casas de destacados representantes da oposição, muitos dos quais foram detidos, julgados e condenados a penas de prisão efetiva.
Dois deles, Serguei Udaltsov e Leonid Razvozzhaev, ativistas da Frente de Esquerda, acabam de ser acusados formalmente pelo Comitê de Investigação da Rússia (CIR) de organizar distúrbios na praça Bolotnaya, em Moscou, em maio do ano passado, durante uma manifestação política. Se forem condenados, Udaltsov e Razvozzhaev poderão pegar até 10 anos de prisão.
Um outro aspecto que diferencia a Rússia do Brasil na questão dos protestos populares é o fato de muitos oposicionistas russos estarem emigrando, temendo ser presos. Isso aconteceu, por exemplo, com o campeão mundial de xadrez e oposicionista Garry Kasparov, que declarou, em uma entrevista coletiva à imprensa, em Genebra, que não tem intenção de voltar para a Rússia no futuro próximo.
Segundo algumas fontes, cerca de 50 ativistas políticos abandonaram a Rússia no ano passado.
No caso de um dos mais conhecidos críticos do governo, Alexei Navalny, antes de submetê-lo a cinco processos criminais, realizar uma série de buscas focadas nele e em membros de sua família, as autoridades deram a entender que sua presença no país era indesejável.
Por isso, muitos dos que poderiam, teoricamente, “desestabilizar” o país, acabam por se ver na necessidade de emigrar, o que, ao que sabemos, não acontece no Brasil a não ser por motivos econômicos.
O governo russo também não deixa de “acompanhar” dois dos mais importantes elementos de uma possível revolta popular: a imprensa e as redes sociais. Praticamente toda imprensa federal tem participação total ou parcial do Estado ou de empresas públicas, com as consequências inerentes. Na Internet, nomeadamente a mídia digital russa, há liberdade de expressão, mas os sites considerados “extremistas” podem facilmente ser fechados pelas autoridades sem autorização judicial. As redes sociais, especialmente as locais (Vkontakte, Odnoklassniki, Moi Mir) são monitorizadas pelas autoridades e, caso necessário, “serão tomadas as medidas adequadas”.
A diferente situação da mídia na Rússia e no Brasil me parece ser aqui o elemento fulcral: Na Rússia, o poder exerce uma influência decisiva sobre aqueles mídia que financia diretamente ou através de grandes empresas públicas (como não podia deixar de ser). Por isso, é fácil convencer a população de que qualquer protesto que surja é nocivo ao país ou que a atuação da polícia foi adequada e necessária. No Brasil, os jornalistas, em face da violência policial, levam a restante população a ficar do lado dos manifestantes, coisa que não ocorre na Rússia.
Outro aspecto de “contenção da agitação”: as autoridades russas tentam convidar alguns oposicionistas para participar em órgãos consultivos e, desta forma, ter em conta as suas reivindicações, ao mesmo tempo que neutralizam a sua ação nas ruas. Por exemplo, um dos mais ativos participantes dos protestos do primeiro semestre deste ano, o escritor Dmitri Bykov, foi convidado para integrar o Conselho Social, ligado ao Ministério da Educação e Ciência.
A Rússia tem, desta forma, toda uma estratégia de contenção de protestos, nas mais variadas áreas, muitas das quais nem referimos aqui, cujo objetivo é o de qualquer governo: manter o poder e a estabilidade social.
Por isso, a conclusão a que chegamos é que não, o Brasil não pode contagiar a Rússia. Felizmente, dirão uns, ou infelizmente, dirão outros.
* A opinião do autor pode não coincidir com a opinião da redação.
VOR/UNO