por Luiz Flávio Gomes
Uma empresa ligada à Fifa (Match Services) comprava ingressos distribuídos como cortesia e os revendia a preços astronômicos. Onde há procura, sempre existe um grupo mafioso que promove a oferta (de serviços, de produtos ilegais etc.). Um grupo de parasitários desqualificados, envolvendo estrangeiros e brasileiros, ganhava dinheiro com esse “negócio fraudulento” (que envolve crime organizado, cambismo, corrupção ativa, lavagem de dinheiro e sonegação fiscal). Dentre eles acha-se Raymond Whelan, que foi preso e liberado em seguida. Diante da decretação de nova prisão (ontem), ele fugiu (em companhia do seu advogado). Daí a pergunta: o suspeito ou acusado tem direito de fugir?
A resposta, no ordenamento jurídico brasileiro, é positiva. Há duas espécies de fuga: (a) fuga de um estabelecimento prisional e (b) fuga para evitar a prisão (que se considera ilegal ou injusta). Não constitui nenhum crime fugir da cadeia onde o preso se encontra, salvo se se vale de violência contra alguém ou se causa danos (Código Penal, art. 352). Sem violência ou danos patrimoniais, portanto, todo preso pode evadir-se da prisão onde se encontra, sem praticar crime. Isso, no entanto, constitui falta grave que gera a perda de 1/3 do tempo de pena que ele já conquistou pela remição (pelo trabalho ou pelo estudo).
É possível também fugir para evitar a prisão que se considera ilegal ou injusta. Essa é a jurisprudência pacífica do STF: “É direito natural do homem fugir de um ato que entenda ilegal. Qualquer um de nós entenderia dessa forma. É algo natural, inato ao homem” (Ministro Marco Aurélio, do STF). A fuga (para a preservação do direito à liberdade) é um direito. Como não está sancionada pelo direito penal, passa a ser um ato legal. No campo punitivo, tudo que não está legalmente proibido, é permitido. Não podemos confundir a ética com o direito.
Se do ponto de vista jurídico a fuga não é sancionada (não é um ilícito penal), resulta interessante analisar a questão ética de quem foge para evitar a prisão preventiva (caso do inglês Whelan). Antes da sentença final condenatória, todos somos presumidos inocentes (CADH, art. 8º). Nos presídios brasileiros não vigora absolutamente nenhum mandamento jurídico (nem leis, nem constituição, nem tratados). Tudo é inobservado. A inviolabilidade da vida garantida constitucionalmente, dentro das prisões, fica (na prática) suspensa, porque aí o preso se transforma em homo sacer (humano que pode ser morto quase sempre sem consequência nenhuma). Tendo em vista as condições indecentes das prisões brasileiras, considera-se a fuga para evitar a prisão preventiva não só um direito como um ato de sobrevivência.
Em todos os crimes cometidos sem violência não deveríamos (como princípio geral) trabalhar com a lógica da prisão, sim, com penas alternativas e, sobretudo, com a pena de multa (tendente ao empobrecimento). A quadrilha (a máfia) dos ingressos não praticou nenhum tipo de violência. Logo, deveriam seus membros (que ganharam muito dinheiro com o ilícito) perder todos os benefícios conquistados e ainda perder boa parte do seu patrimônio. No Brasil sempre preferimos, no entanto, que o malfeitor, incluindo os criminosos de colarinho branco, vá para a cadeia. Nosso fetichismo pela cadeia favorece a intangibilidade da riqueza dos que ganham fortunas com o delito. No fundo, nossa cultura privilegia a riqueza (lícita ou ilícita). É um atraso cultural muito grande. A mudança de paradigma se faz urgente.
Luiz Flávio Gomes, jurista e diretor-presidente do Instituto Avante Brasil.
ai/UNO