quinta-feira, dezembro 26, 2024

“O Código Florestal cria o caminho ‘legal’ para concluir a grilagem da terra”

“Trabalho com uma população ribeirinha do Tapajós que terá seu território submergido por estes barramentos. Vejo a angústia e o terror com que o anúncio chegou a eles”, narra o geógrafo Mauricio Torres.

“Entendo que a pesquisa nas situações de conflito não pode se limitar ao modelo onde o pesquisador ocupa o papel de sujeito, como agente das ações de perguntar e registrar, e o grupo estudado se limita a ser objeto da pesquisa.” Assim Mauricio Torres assume sua posição sobre as pesquisas que desenvolve na Amazônia. Em entrevista à IHU On-Line realizada por e-mail, Torres falou sobre os estudos que produz acerca dos conflitos em disputas territoriais que envolvem camponeses e povos da floresta em áreas da Amazônia brasileira. Para ele, “os grandes projetos em curso na Amazônia continuam a conceber a floresta como um banco de recursos naturais, um estoque de matéria-prima”.

Mauricio Torres é professor de Geografia na Universidade de São Paulo. É mestre em Geografia Humana pela mesma instituição. Foi orientando do professor Ariovaldo Umbelino e, por acaso, como diz, “foi parar na Amazônia”. Hoje, vive entre São Paulo e o Pará, onde realiza suas pesquisas.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como é sua rotina de pesquisa em Santarém, no Pará, e, especialmente, nas áreas florestais?

Mauricio Torres – Eu pesquiso sobre conflitos em disputas territoriais que envolvem camponeses e povos da floresta em áreas da Amazônia brasileira. Gente que vive diante de formas de terror e violência absurdas. Procuro mostrar de modo muito claro de que lado estou, pois o mais difícil é construir a indispensável relação de confiança com as populações da floresta. Talvez, o principal a se dizer é que nisso não há nenhum assistencialismo, nenhuma bondade, muito menos aventura. É trabalho.

Entendo que a pesquisa nas situações de conflito não pode se limitar ao modelo em que o pesquisador ocupa o papel de sujeito, como agente das ações de perguntar e registrar, e o grupo estudado se limita a ser objeto da pesquisa. Procuro colocar-me também na posição de objeto, na medida em que posso servir de mídia para levar a demanda do grupo a outros planos de combatividade. E isto inclui, muitas vezes, apenas dar visibilidade para o conflito. Dar visibilidade política à população estudada.

Falo de um trabalho assumidamente parcial. Ora, um cientista empenhado em desenvolver um novo tipo de serra para madeireiras selou um compromisso com um determinado grupo, com uma determinada classe. O conhecimento daí gerado é político na medida em que se equaciona as relações de poder estabelecidas. Sempre o conhecimento que geramos na academia tem uma apropriação política. Portanto, o pesquisador deve ter claro quem vai se apropriar do conhecimento que ele está produzindo, sem nenhuma hipocrisia de higienismo científico.

IHU On-Line – Quais são os principais empreendimentos feitos nas áreas florestais brasileiras? Dos empreendimentos iniciados em áreas florestais, quais mais afetam as populações que vivem nas florestas?

Mauricio Torres – A Amazônia parece viver um ressurgimento dos grandes projetos. O roteiro se repete, infelizmente, muito fiel à megalomania dos projetos ufanistas da ditadura militar na década de 1970.

De modo geral, os grandes projetos em curso na Amazônia continuam a conceber a floresta como um banco de recursos naturais, um estoque de matéria-prima. Qualquer empreendimento que se apoie nesta concepção é sempre danoso aos povos da floresta. Isto porque, para os inúmeros grupos indígenas, ribeirinhos, quilombolas, varjeiros, castanheiros, etc., a mata assume muitas outras dimensões de valor além de um banco.

São vários os grandes empreendimentos que ameaçam a Amazônia e seus povos: agronegócio, madeireiras (com a Lei de Gestão de Florestas Públicas), hidrelétricas, mineradoras, projetos de grandes rodovias e hidrovias, etc. Em comum, todos eles têm o fato de reproduzirem o avanço do grande capital nacional e internacional sobre a floresta, numa concepção de “conquista”. É muito importante ressaltar que este progressivo “domínio” vem sendo precedido e viabilizado por um aparato jurídico e político que, por um lado, remove obstáculos legais, por outro, cria normativas para regulamentar o saque. Pensando em apenas três dos grandes projetos que ressurgem na Amazônia, podemos exemplificar como isso acontece.

Temos a mineração. Os impactos ambientais e sociais dos grandes projetos mineradores são imensos e bastante conhecidos. (Nunca é demais lembrar o exemplo da Serra do Navio, no Amapá.) São sempre empreendimentos que demandam intensamente recursos e energia, para os quais a Amazônia é saqueada com o fim de, em um sistema colonial, abastecer os países industrializados de matéria-prima em um processo onde o principal beneficiado são as grandes mineradoras transnacionais. E a situação ameaça ficar ainda muito pior. A mineração em terras indígenas, hoje, não é permitida. Porém, três projetos de lei (PLs 1610/96, 7099/06 e 5265/09) tentam regulamentar a atividade em parâmetros em que as mineradoras poderiam trabalhar até quando não houvesse a aquiescência da população indígena.

Há também o hidronegócio. Como dito, os projetos mineradores são sempre muito eletrointensivos, ou seja, demandam uma quantidade enorme de energia e, também pelo cenário de acelerada expansão da mineração, os megaprojetos hidrelétricos ressurgem atropelando toda e qualquer racionalidade, legalidade, direitos sociais e ambientais. Os vergonhosos casos de barramentos de Santo Antônio e Jirau, no Rio Madeira, de Belo Monte, no Xingu e do complexo de cinco hidrelétricas no Rio Tapajós são exemplos deste atropelo.

Belo Monte

Tomando-se o caso de Belo Monte como exemplo, as 11 ações movidas pelo Ministério Público Federal contra a obra ilustram o nível de ilegalidade do projeto. Ainda assim, o governo federal distorce e flexibiliza as normas de licenciamento até liberar o que será um verdadeiro crime social e ambiental. Neste caso, a legislação que rege a análise e emissão de licenças para este tipo de obras seria o obstáculo legal a ser removido.

Tapajós

No caso do Rio Tapajós, o complexo de barramentos alagaria imensa porção de unidades de conservação e, desde já, o governo Dilma se empenha na redução dessas áreas protegidas. Novamente, remove-se política e legalmente o que atrapalha, ao grande capital, o controle da área. Note-se que, em uma destas unidades de conservação a serem reduzidas, o Parque Nacional da Amazônia, o Estado expulsou com muita violência e desrespeito, na década de 1970, um grande contingente de população tradicional da área, pois esta modalidade de UC veda a ocupação de famílias ribeirinhas. Ou seja, a sociedade já pagou um alto custo para se ter este Parque e, agora, haverá que pagar novamente para não tê-lo.

Por fim, há o avanço do agronegócio na Amazônia, que foi, até então, bastante atrapalhado pela condição fundiária da região e pela legislação ambiental. A falta de titulação das terras (em sua enorme maioria públicas) e os rigores do Código Florestal contribuíram muito para que mais florestas não fossem transformadas em soja e pecuária extensiva e, também, para que mais comunidades inteiras não fossem expropriadas para darem lugar a fazendas. Não estou dizendo que isso não aconteceu. Pelo contrário, aconteceu muito. Digo que, com a flexibilização da legislação ambiental e com o Programa Terra Legal que diz promover a “regularização fundiária”, este processo tende a se acelerar muito.

O programa federal Terra Legal nasce com a promulgação da Medida Provisória 458/09, transformada na Lei Ordinária 11.952/09, e se anuncia como vindo para reconhecer o direito à terra dos camponeses na Amazônia. Porém, os dados do próprio Incra mostram sem margem para dúvidas que o grileiro será o verdadeiro beneficiário deste programa, pois mais de 80% do território se concentrará nas mãos de menos de 15% dos que ocupam a terra. Aqui, o grande capital remove um obstáculo para controlar a Amazônia, que é o Código Florestal, e cria um caminho “legal” para concluir a grilagem da terra.

IHU On-Line – Como você recebeu a notícia de que o governo pretende ampliar o número de hidrelétricas em áreas florestais como no Tapajós? Quais os prós e contras desses empreendimentos?

Mauricio Torres – Trabalho há muitos anos com uma população ribeirinha do Tapajós que terá seu território submergido por estes barramentos. Vejo a angústia e o terror com que o anúncio chegou a eles. São comunidades tradicionais para quem o território é muito, mas muito mais do que mero lugar onde morar e plantar. Eles têm a história de suas vidas ali. Têm seus pais, avós, bisavós e filhos enterrados nesta localidade.

São profundos conhecedores do rio e da floresta, detentores de tecnologias impressionantes para o aproveitamento e manejo da floresta. Porém, trata-se de um saber local, um saber que não se transporta para um local diferente para o qual eles sejam realocados.

Com os alagamentos, é como se, além de toda a materialidade sobre a qual apoiam sua identidade, eles fossem também expropriados de todo o conhecimento que adquiriram por toda uma vida. Mais que isso, um conhecimento que herdaram de várias gerações e que, em muitos aspectos, norteia suas vidas.

Quanto ao impacto ambiental, além das imensas porções de florestas em unidades de conservação a serem alagadas, há que se pensar nos resultados de se transformar a dinâmica de um rio da dimensão do Tapajós na dinâmica de uma sucessão de lagos. Nenhum rio pode suportar cinco barramentos.

Quem colherá os bônus desses empreendimentos serão as empreiteiras (que, aliás, terão bastante dinheiro para continuar a financiar campanhas eleitorais), as mineradoras transnacionais e os países de primeiro mundo, que poderão continuar a fechar suas fábricas de alumínio por não quererem pagar o imenso custo social e ambiental desta produção.

IHU On-Line – Como você vê a remarcação de áreas de preservação ambiental no Brasil para novos projetos de infraestrutura na região? O que isso significa para a conservação da biodiversidade e preservação dos povos tradicionais? Corre-se o risco de extinguir áreas que deveriam ser preservadas?

Mauricio Torres – Acredito que a remarcação dessas áreas concorre, conjuntamente com outras medidas planejadas para a Amazônia, no sentido de agravar o quadro que mencionei antes.

Faz parte da tática de remover obstáculos jurídicos, a redução de unidades de conservação, não só na área do Rio Tapajós, como na Amazônia toda. São muitos os projetos de lei que pleiteiam a redelimitação que reduz unidades de conservação, sempre em benefício de grileiros e madeireiros.

O que assusta no caso do Rio Tapajós é o fato de se ensejar fazer tal redução por meio de Medida Provisória. Neste caso, a pretensão da redução parte do próprio governo, contrariando frontalmente os pareceres técnicos dos gestores das unidades de conservação afetadas. Independente de qualquer estudo ou racionalidade, o Estado já tem por certo que as unidades de conservação precisam ser reduzidas. Tudo se pauta pelo fato de que elas “atrapalham” as pretensões do grande capital.

IHU On-Line – Em que consistiria, na sua avaliação, um desenvolvimento sustentável na Amazônia?

Mauricio Torres – Não consistiria. Não consiste. “Desenvolvimento sustentável” é o axioma criado para se legitimar tudo e qualquer coisa. O adjetivo “sustentável” vai em tudo a que se quiser dar um ar legítimo: Belo Monte Sustentável, Juruti Sustentável (como chamam o projeto de mineração de bauxita da Alcoa), etc.

Desenvolvimento é um conceito vazio e bastante perigoso. O que se entende por essa palavra, hoje, é a ideia vaga e perigosa que sempre acaba por ser traduzida por crescimento econômico. E, pior, um crescimento que inerentemente gera pobreza.

Não existe nada tão abstrato e com um poder axiomático tão grande. É sempre entendido como algo que leva do pior para o melhor. E muitas vezes esse “melhor” é o sacrifício de parcelas imensas da população.

É absurda a forma como os grandes projetos se autoproclamam como vetores do desenvolvimento. “Com Belo Monte, Altamira terá hospitais”, “com a Alcoa, a população de Juruti terá escolas”, “com a Vale, no Sul do Pará, as unidades de conservação poderão ser monitoradas”. O que se vende como “desenvolvimento” que chegaria com a instalação dos grandes empreendimentos nada mais é do que o acesso a direitos civis. Direitos constitucionalmente previstos, tarefas do Estado, que deveriam ser garantidos independentemente de quaisquer projetos. O discurso do “desenvolvimento” sedimenta a nociva ideia de que só por meio do “favor” se pode ter acesso àquilo que lhe é garantido por lei. Reforça-se um cidadão de favor, em detrimento do cidadão de direito.

Porém, a resistência em Belo Monte, em Juruti, dos quilombolas de Alcântara contra as instalações da base espacial, dos povos do Rio Tapajós e tantas outras, mostra a força de resistência dos pobres do campo. Aliás, os indecentes números de assassinatos no campo evidenciam a guerra que travam contra a entrega da Amazônia ao grande capital que se dá sob a bandeira do “desenvolvimento sustentável”. É nesta resistência que acredito e a ela volto meu trabalho.

ai24horas

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