1. Em que consiste o populismo penal?
O populismo penal é um discurso e, ao mesmo tempo, uma prática punitiva (um método, um procedimento ou um movimento de política criminal),
· paralelo (com características próprias) e, ao mesmo tempo, complementar de tantos outros discursos punitivistas (movimento da lei e ordem, tolerância zero, direito penal do inimigo etc.), e, concomitantemente,
· uma doença das democracias contemporâneas (veja Ferrrajoli: 2012, p. 57) (busca-se o apoio ou o consenso popular para suas erráticas e antidemocráticas teses),
· inventado pelo ultraliberalismo norte-americano e inglês (anos 70), que é neoliberal na economia (combate ao EBES), neointervencionista no plano internacional e neoconservador no campo penal,
· e usado como estratégia (dentre tantas outras) de combate ao estado de mal-estar econômico, quase universal (instabilidade laboral, desemprego, redução salarial, desigualdade, pobreza etc.), gerado pelo neoliberalismo econômico (Estado mínimo, Estado penal) ou agravado por ele naquelas partes do planeta marcadas pelas densas heranças escravagistas, aristocratas e oligárquicas locais, como é o caso do Brasil,
· [discurso punitivista] que se exprime por meio de um novo direito penal autoritário, hiperpunitivista e neoconservador (novo frente aos regimes de Stalin, Hitler, aos fascismos, ditaduras etc.),
· [discurso] que foi espalhado para o mundo, a partir dos anos 70, pelo ultraliberalismo norte-americano e inglês, que criou ou incrementou a doença (estado de mal-estar econômico), fabricando, ao mesmo tempo, o “remédio” do populismo penal,
· que procura se legitimar (busca de consenso ou apoio popular), nas democracias contemporâneas (no Brasil o populismo penal nasceu junto com a redemocratização – 1985),
· por meio do medo e da insegurança (veja Ferrajoli: 20212, p. 62) (ou seja: do pânico moral),
· que é explorado, dramatizado e difundido pela criminologia midiática (Zaffaroni: 2012, p.303 e ss.),
· para o endurecimento constante da lei penal (revigoramento persistente do poder punitivo) (Ferrajoli: 2012, p. 60),
· mesmo onde os índices de criminalidade estejam caindo (como é o caso da Itália – Ferrajoli: 2012, p. 57-58),
· sob a promessa de que, com isso, vai resolver o problema social enfocado em cada momento (veja nosso Populismo penal midiático, Saraiva: 2013),
· em razão do efeito dissuasório da pena e da condenação (confia-se em utopias reacionárias, como a do tolerância zero).
O populismo penal constitui a base prática e discursiva da política pública mais irresponsável dos governos democráticos, porque confia em algo que não funciona nada bem (justiça repressiva), para a solução de um gravíssimo problema social, que é a insegurança pública (comparação com a dengue).
Ele pressupõe:
- um determinado tipo de democracia (“democracia de opinião”, consoante Pavarini: 2009, p. 40, que veio substituir a clássica “democracia representativa”),
- que se caracteriza pela busca de apoio popular ao endurecimento penal (portanto, de baixo para cima, não de cima para baixo, que demarcava o rigorismo penal, a partir de 1940),
- bem como pelo uso (a instrumentalização) do direito penal (do poder punitivo) como “arma política e eleitoreira” (Ferrajoli: 2012, p. 58-59).
E se caracteriza:
a) pela degeneração do funcionalismo penal de Durkheim e de Luhmann (veja Luís W. Gazoto, cuja tese de doutoramento será convertida em livro que publicaremos em conjunto), levada a cabo no campo penal por G. Jakobs (com seu direito penal do inimigo);
b) pela transformação da demanda populista por mais castigo em vingança (que é uma festa – Nietzsche), que se vê favorecida por uma técnica (mnemotécnica) também explicada por Nietzsche;
c) pela difusão do medo e da insegurança pela criminologia midiática (Zaffaroni: 2012), que assume o papel, a partir da exploração e espetacularização do medo e da insegurança, de (a) empreendedora moral do castigo ou mesmo (b) de uma mídia justiceira (Ferrajoli: 2012, p. 58; L.F. Gomes e D.S. de Almeida);
d) pela transformação da segurança social (dos direitos sociais) e individual (segurança do cidadão frente ao Estado) em segurança pública (Ferrajoli: 2012, p. 61), que no fundo é a segurança do Estado e do modelo sócio-econômico que o comanda, que não se confunde com o conceito de segurança nacional das ditaduras;
e) pela absoluta ineficácia preventiva das suas medidas (nenhum tipo de crime diminuiu de 1985 para cá, visto que o populismo penal acredita no efeito dissuasório da pena e da condenação).
O processo (o discurso) do populismo penal:
(a) se alimenta e se incrementa diuturnamente com a “sensação de impotência” do cidadão (amedrontado, inseguro, desnorteado) que, ao demandar vingança, transforma sua impotência em prepotência;
(b) ganha visibilidade concreta com a atuação populista dos agentes executivos do poder punitivo (policiais e agentes penitenciários), que dão vida ao novo direito penal autoritário;
(c) e se torna patológico, escatológico e nazista quando conta com o apoio dos juízes (que deveriam funcionar como semáforo vermelho de contenção dos abusos do Estado de Polícia).
O produto final gerado pelo populismo penal (o direito penal autoritário e prepotente produzido por ele) é atécnico, irracional, desproporcional (excessivo), desarrazoado, demagógico, antigarantista, hiperpunitivo, neoconservador, reacionário, simbólico (em termos de prevenção de crime), propagandístico, desigual, discriminatório, fundamentalista, racista, nada empírico, muito intuitivo, falso, tendencioso, manipulador, paranoico, enganoso, ineficiente e vingativo (Ferrajoli: 2012, p. 57 e ss.; Luís W. Gazoto; Zaffaroni: 2012).
O populismo penal é um engodo da democracia (porque é totalmente ineficiente em termos preventivos).
Ele promete resultados mágicos, como fim da insegurança, fim do medo, fim da delinquência, ou seja, uma ilusória cura para um problema social muito grave (que é a insegurança e o medo),
· assim como utopias reacionárias (tolerância zero, que leva a crer na criminalidade zero – Ferrajoli),
· por meio de uma infinidade de discursos sedutores, como lei e ordem, tolerância zero (Ferrajoli: 2012,
p. 63), inocuização, emergencialismo, guerra contra as drogas, guerra contra o crime organizado, guerra contra o terrorismo, three strikes and you are out, direito preventivo da sociedade de riscos, direito penal do inimigo, polícia operativa (do extermínio) etc.
· partindo de uma crença mágica, de que funciona o efeito dissuasório da pena e da condenação (metáfora do homem das cavernas).
Dentre tantos outros, são efeitos práticos do populismo penal:
a) a produção de uma inflação legislativa desorganizada e irracional (quase 100 leis penais de 80 para cá);
b) a desconfiguração (deformação) do direito penal liberal típico do Estado de Direito (perigo abstrato presumido, dolo eventual no lugar dos crimes culposos, responsabilidade coletiva etc.);
c) a criação ou imposição de penas completamente desproporcionais (CP, art. 180, § 1º) (fundamentalismo punitivo);
d) a exacerbação da rejeição social do preso e do egresso (que se transforma em zumbi);
e) o incremento da criminalidade em razão da ineficácia preventiva de novos crimes (ou seja: não redução dos crimes), ao contrário, em alguns momentos, há inclusive a produção de mais crimes (o populismo penal apresenta também efeitos criminógenos) (metáfora do elefante e dos ratos);
f) a não solução do problema social enfocado, em razão da inapetência do Estado e da sociedade (que deixam de buscar as soluções necessárias, factíveis, inteligentes e razoáveis para o seu devido equacionamento).
g) o encarceramento massivo (e inusitado), sobretudo dos pobres (daí o caráter classista e racista do populismo penal conservador clássico – Ferrajoli: 2012, p. 60),
· que nos últimos anos, no entanto, começaram a ter também a companhia de alguns poderosos (por força do efeito deslizante da mídia e do populismo disruptivos),
· cumprindo todos os culpados, no entanto, o papel de “bodes expiatórios”,
· cujas sanções seletivas tranquilizam momentaneamente o sentimento de vingança e de impotência do cidadão.
Luiz Flávio Gomes, jurista e diretor-presidente do Instituto Avante Brasil.
ai/UNOPress