O Brasil está criando uma subcategoria de trabalhadores. No setor público, nos mesmos corredores em que circulam ministros, secretários de estado, diretores de estatais, juízes e desembargadores, estão empregados que não têm recebido sequer o que lhes é garantido pela Constituição. Terceirizados nos governos federal, estaduais e municipais e nos tribunais de Justiça de todo o país sofrem com uma série de desrespeitos aos direitos trabalhistas. Apesar da dura rotina nos afazeres diários, muitos enfrentam atraso dos salários, do 13º e das férias e, pior, quando a empresa desaparece sem honrar os contratos, ficam sem as verbas rescisórias e sem os depósitos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).
O que mais assusta os especialistas é o fato de não haver perspectivas de mudanças no horizonte — deixando uma avenida aberta para constantes golpes. Com a recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de desobrigar União, estados e municípios de arcarem com os custos trabalhistas não pagos por empresas terceirizadas, mesmo elas tendo recebido o valor integral dos contratantes, as conquistas por parte dos empregados tendem a ser mais difíceis.
“Muitos juízes dirão, a partir de agora, que o Estado não é responsável, que ninguém é responsável. Sendo assim, o prejudicado será sempre o trabalhador”, disse o procurador do trabalho Carlos Eduardo Brisolla, do Núcleo de Relações Coletivas de Trabalho do Ministério Público do Trabalho (MPT) no Distrito Federal. “A decisão do STF desfavorece os terceirizados. Se, quando era responsável pelas irregularidades, o governo não fiscalizava o contratos, agora é que não fará mais nada, deixando os terceirizados à própria sorte”, acrescentou Alessandra Camarano, advogada do Sindicato dos Rodoviários do DF e especialista em direito do trabalho.
Atualmente, Alessandra acompanha cerca de 60 processos de terceirizados que levaram calote. Apenas no Tribunal Superior do Trabalho (TST), mais de 40 motoristas aguardam a restituição de salários, as férias e a rescisão do contrato com a extinta Serviter, que fechou as portas e desapareceu. “Empresas sem sede e sem história no mercado vencem os pregões realizadas pelos governo. São contratadas, recebem o que lhes é devido. Mas, perto do fim do contrato, somem, deixando milhares de trabalhadores na mão. Isso tudo, sem qualquer fiscalização por parte dos contratantes”, criticou.
Ação vigorosa
Nem mesmo o Palácio do Planalto escapa dos constantes golpes das empresas terceirizadas. Cerca de 300 funcionários da copa e da limpeza aguardam a rescisão do contrato com a Visual Locação de Serviços e Construção Civil, que deixou de atuar na Presidência da República em dezembro do ano passado. A União conseguiu autorização na Justiça para bloquear R$ 477,7 mil que seriam pagos à empregadora e repassá-los diretamente aos funcionários.
No entanto, embora já estejam contratados pela Apecê Serviços Gerais, os trabalhadores não foram desligados oficialmente da Visual.
Especialistas defendem que, para evitar os calotes, o ideal seria a criação de uma legislação específica sobre a terceirização. Mas, pelo que tudo indica, esse processo está longe de ser concluído. “Não há um projeto de lei em análise avançada. Não enxergo num contexto breve a aprovação de uma norma, exceto se houver uma atuação mais vigorosa do governo nesse sentido”, ressaltou o advogado trabalhista Mauro de Azevedo Menezes.
Empresas sem sede e sem história vencem os pregões realizados pelo governo. São contratadas, recebem o que lhes é devido. Mas, perto do fim do contrato, somem, deixando milhares de trabalhadores na mão”
Alessandra Camarano, advogada do Sindicato dos Rodoviários do DF
Ponto a ponto Carlos Eduardo Brisolla
O procurador do trabalho Carlos Eduardo Brisolla, do Núcleo de Relações Coletivas do Ministério Público do Trabalho (MPT) no Distrito Federal, não tem dúvidas: as frequentes irregularidades nos contratos de empresas fechados pelo governo estão no processo de licitação. “A escolha tem de ser feita pelo menor preço. O problema é que as firmas apresentam um valor que não pode ser executado, que não cobre os serviços. Assim, ficam seis ou sete meses, quebram e vão embora”, disse. Segundo ele, a lei prevê que o administrador público considere inexequível a proposta de uma terceirizada. “O problema é que tal atitude o desclassificará como administrador. O Tribunal de Contas da União (TCU) pegará no pé dele e questionará o porquê de ele desconsiderar a proposta. Por isso, muita gente resiste em se posicionar”, afirmou. Para corrigir tal situação, Brisolla defende a realização de concursos e o fim da terceirização. Veja, a seguir, trechos da entrevista que ele concedeu ao Correio. (CB)
Lei das Licitações
A legislação do Brasil é meio caótica, capenga. Há projetos de lei no Congresso Nacional sobre terceirização. Alguns são bons; outros, complicados. Uma norma deveria incluir pontos como responsabilidade do contratante de serviços. É certo que a licitação seja feita pelo menor preço, mas o administrador tem de avaliar se o valor apresentado é exequível.
Decisão do STF
Na minha opinião, a decisão do STF (de desobrigar União, estados e municípios de arcar com custos trabalhistas das terceirizações) causará problemas na Justiça do trabalho. Não concordo com ela, apesar de ter um mérito: fazer a gente discutir o assunto e não apenas o tratar de maneira paliativa.
Enganação
Embora o número de terceirizados esteja diminuindo, percebemos que o calote tem aumentado. Isso ocorre por um problema na licitação. O Tribunal de Contas da União (TCU) exige que os órgãos contratem a empresa que cobra o menor preço, pois isso evita privilégios. Isso é um resguardo importante dos cofres públicos. Mas há empresas que apresentam preço inexequível, ficam seis ou sete meses e quebram. Elas jogam o preço para ganhar e acreditam que haverá uma repactuação lá na frente.
Dificuldades
É complicado para um administrador público desclassificar uma proposta por considerá-la inexequível. O TCU pega no pé e questiona o porquê de o órgão desconsiderar uma proposta, se ele está favorecendo alguém. Como não quer mexer em cumbuca, ser investigado pelo TCU, o administrador vai pela saída mais fácil, de contratar o mais barato.
Concursos
Criou-se a ideia de que terceirizar é mais barato do que concurso público. Mas o tempo mostrou o contrário. No fim, a administração pública paga duas vezes por conta de uma empresa fajuta, que dá golpes. Com as seleções, o problema acabaria. Não é mais caro. Na realidade, com a terceirização, o que se tem é um atravessador, um mediador. Por que os contratados não fazem logo parte da administração? Fonte: Correio Brasiliense