Vandalismo x Violência policial

por Luiz Flávio Gomes

O entusiasmo insuperável (energizante, rejuvenecedor) que nos proporcionaram os protestos civilizados nas ruas (por mais justiça social, ou seja, melhor transporte público, melhores hospitais, educação de qualidade etc., assim como pelo moralização dos poderes públicos e dos políticos), conta com a mesma dimensão e proporção da nossa repugnância à violência, seja privada, seja pública, que é contra a democracia (ou melhor: a violência é inimiga da democracia).

Os autores da violência gratuita (desnecessária), de vulgaridade inexcedível, lembram o que escreveu Tocqueville (nobre francês que foi estudar a democracia norte-americana), em 1840: “Vejo [na democracia] uma multidão inumerável de homens semelhantes e iguais que giram, sem descanso, sobre si mesmos para procurarem pequenos e vulgares prazeres com os quais preenchem suas almas”.

O homo democraticus, quando não comprometido com a ética (a arte de viver bem humanamente – Savater) nem com a causa da democracia (bem geral de todos), resulta mesmo regido pela vulgaridade, que significa duas coisas: mediocridade moral e decadência do bom gosto. Os moralistas, os árbitros da elegância, os aristocratas e os burgueses da elite nunca aceitaram a cultura da vulgaridade, mas não se pode esquecer que ela é coirmã da cultura da igualdade e marca registrada da democracia, quando o ser humano se despreocupa com seus deveres éticos.

O Ocidente inventou muitas coisas fantásticas nos últimos três séculos: as ciências, o Estado de Direito e a democracia estão dentre essas inovações (Weber). Democracia (igualdade, liberdade e fraternidade, da Revolução francesa) significou a derrubada da aristocracia e da monarquia. A desigualdade formal e material era a regra, no Antigo Regime. Com a democracia veio a igualdade (formal). Com a cultura da igualdade (formal) eclodiu, paralelamente, naqueles que não cultivam a ética, a cultura da vulgaridade, que ganhou força inigualável com o advento da televisão, em meados do século XX.

O ser humano do século XXI tem bons motivos para comemorar a evolução fantástica ocorrida em relação às liberdades (o progresso moral, nesse campo, é inequívoco), mas, com frequência, por falta de uma estrutura ética e moral sólida, cai na tentação de não fazer bom uso dessa liberdade, gerando excentricidades e grosserias típicas do mundo medieval. Nessa descrição se enquadra a violência protagonizada, nos últimos dias, pelos vândalos radicais e alguns policiais, que se mostraram totalmente despreparados para o exercício da função (recordando os jagunços do sertão assim como os capitães do mato do tempo da colônia e do Império escravagista).

O pernicioso na violência excrescente (excessiva, desnecessária) é que ela acaba sendo reproduzida (centenas de vezes) na televisão ou mídia impressa. Aliás, quando não tem matéria-prima de boa qualidade de espetacularização, a mídia mesma se encarrega de protagonizar (de inventar) barbáries indescritíveis, como as do News of the World, na Inglaterra, em 2011. Os anunciantes foram os primeiros a tirar o time de campo (marcando distância desse grotesco jornal, de propriedade de Rupert Murdoch, que retrata a podridão do sistema econômico-financeiro aético e nada civilizado).

Agora que temos as redes sociais, é chegado o momento de nos emanciparmos de nós mesmos (da nossa democrática e igualitária vulgaridade), buscando o status de cidadãos envolvidos com o destino da polis e da democracia, por meio da exemplaridade (Javier Gomá), dando vida a um novo modelo de democracia, como projeto de uma civilização igualitária, fundada em bases finitas, de cunho ético.

Podemos nos valer das redes sociais para nos posicionarmos de várias maneiras: exercício da vulgaridade ou a construção de uma nova paideia (formação cultural), que censure os abusos da liberdade (especialmente a de expressão – esse é o caso da censura deplorável imposta, via judiciário, pela família Sarney ao jornal O Estado de S. Paulo) e que lute pelo desenvolvimento de sentimentos e costumes coletivos fundadores de uma saudável e viável vida comunitária (fundada na ética e na justiça social).

O ser humano democrático contemporâneo (como sublinha Javier Gomá) deveria refletir seriamente sobre a necessidade de autolimitação do seu “eu” subjetivo dotado de direitos e liberdades, dominando os seus instintos corporais mais animalescos e eliminando do seu cotidiano as excentricidades e extravagâncias nefastas, dando evidências da sua urbanização, que consiste na eleição da civilização com a recusa, ao mesmo tempo, da barbárie. E tudo isso só ser feito por meio da Ética.

LUIZ FLÁVIO GOMES, jurista e coeditor do portal atualidades do direito. Estou no luizflaviogomes@atualidadesdodireito.com.br